Paulinho da Viola – Meu tempo é hoje.

Participar do documentário sobre Paulinho da Viola, conviver com ele durante quase um ano de preparação e de filmagens, acompanhar o compositor no seu dia-a-dia, conhecê-lo na intimidade de sua família, bater papo, ouvi-lo cantar na marcenaria, tomar uma cachacinha de vez em quando, segui-lo em suas andanças pelo Centro da cidade _ essa foi uma experiência extraordinária, que me enriqueceu profissional, intelectual e existencialmente. Digo por mim, mas sei que poderia dizer também pela Izabel Jaguaribe, a diretora do filme.

O que de longe se imagina que Paulinho é, ele é de perto: simples, suave, sensível, inteligente, elegante. Quem já esteve metido num documentário sabe que há momentos de desgaste, cansaço e estresse. Paulinho viveu vários. Pois bem, em nenhum deles assistiu-se a qualquer surto de temperamentalismo, a uma cena sequer de estrelismo de sua parte.

O ponto de partida conceitual do documentário nasceu de uma afirmação do próprio compositor _ “não sinto saudades” _ e de sua interpretação por João Moreira Salles, que se baseou num texto de Jorge Luis Borges sobre Kafka, explicando como alguém do presente pode fazer seus antecessores se harmonizarem. “Todo escritor cria seus precursores”, diz Borges. “Sua obra modifica nossa concepção do passado, como haverá de modificar o futuro”.

Dizer que Paulinho não tem saudade pode parecer contraditório em quem cultiva tanto o passado. Na verdade, ele tem um modo todo especial de rejuntar os tempos. Ele recupera e revitaliza o passado. Não quer cancelá-lo e revogar a História, não é isso, não é essa moda pós-moderna de, em nome da ditadura do presente, abolir os pretéritos perfeitos e imperfeitos. É outra coisa.

Sua visão não é nem aquela profética “saudade do futuro” tão forte em Fernando Pessoa, nem a nostalgia proustiana, que usa o presente como álibi, como ponto de partida para chegar ao passado. O nosso compositor usa o passado como coisa do presente.

Paulinho na verdade é uma ponte, não uma ruptura. É um craque (vascaíno) de ligação entre a tradição e o novo, o lado de lá e o de cá, o samba de morro e o do asfalto, as raízes e as antenas. Paulinho criou suas influências e seus precursores. Sua obra modificou nossa concepção do que se fez antes em matéria de samba. Ele descobriu a Velha Guarda, e a Velha Guarda passou a ter um pouco a cara de Paulinho, e Paulinho passou a se parecer com a Velha Guarda.

Como diz o samba “De Paulo da Portela a Paulinho da Viola”, de Monarco, da Velha Guarda da Portela, e Chico Santana:

Antigamente
Era Paulo da Portela
Agora
É Paulinho da Viola

Paulo da Portela
Nosso professor
Paulinho da Viola
O seu sucessor

Essa relação de precursor e sucessor é um processo de “desleitura” e “desapropriação”. Na admirável síntese de Arthur Nestrovski, falando de Borges, é a “apropriação do poeta mais velho, o retorno do precursor como se fosse, ele mesmo, obra do poeta mais novo”. Talvez por isso, “a angústia da influência” e “a carga de anterioridade” não produzam nele “a mera repetição”. O passado não age sobre ele como um “agente bloqueador”, edipiano.

O marceneiro Paulinho gosta de restauração, gosta de dar nova forma e vida às coisas, tanto quando o compositor se compraz em resgatar velhos sons e tanto quanto a pessoa física se diverte em manter vivos alguns hábitos em extinção, como jogar sinuca ou assistir a uma partida de jongo, sem falar no papo, na cachacinha, no amor à Portela e ao Vasco, numa roda de chorinho, no feijão da Tia Vicentina antes, e agora numa peixada na casa da Surica.

Participar desse documentário foi em suma viver uma experiência única, foi realizar uma viagem extraordinária numa espécie de rio passando na vida e na obra de Paulinho da Viola.


Zuenir Ventura